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Quero dançar o poente (2022)

Nota de encenação

Quero dançar o poente é um espetáculo sobre a idade. A idade que ainda tem muita idade, ao longo do fio do tempo que se continua a enrolar e a desenrolar no fuso dos dias, das semanas, dos meses, dos anos… A idade vista não como um fatalismo, em que se entra na última estação do comboio trágico da vida, mas como um processo que pode ser caracterizado pela mesma criatividade, a mesma alegria e a mesma capacidade de fazer que alimentam os sonhos das crianças e dos jovens. Nasceu da ideia de que a beira do fim pode ser tão bonita e fascinante como o começo de qualquer aventura. Depois, começaram a dar-lhe forma e luz os versos em que se foi traduzindo esta ideia:

    Quero dançar o poente
    às cavalitas do tempo.
    Com os olhos sempre em frente
    e muitas vidas atrás,
    quero dançar o poente,
    que de tanto sou capaz.

E começámos a escavar, numa arqueologia do tempo, as memórias do futuro, através de um processo de escuta: ouvimos histórias e fragmentos de vidas de quem vai à nossa frente a iluminar o caminho, sabendo reinventar a realidade por vir de uma forma radiante e luminosa. As suas experiências foram o fermento das personagens desta peça que cada ator ou atriz recriou, misturando-as com outros conhecimentos, outras informações, outros textos, outros afetos e outra gente. Depois, num caminho partilhado com parceiros de jornada, através de um exercício de improvisação, corporalização e interação em palco, nasceram estas personagens e os seus mundos, que, pela mão dos nossos cenógrafos, transformaram o armazém de coisas velhas e abandonadas, em que querem traduzir este universo da “maior idade”, no abrigo das “cidades invisíveis” inspiradas por Italo Calvino e por um poema de Pablo Neruda.
Em cada dia que passava, em cada ensaio que decorria, ia-se decantando um novo poente no corpo e na alma de todos nós, destilavam-se lentamente os passos de uma nova dança nos olhares em que íamos aprendendo a renascer, e, então, novos versos, acompanhados da música de Luís Pedro Madeira, deram ainda mais sentido a esta invenção da vida:

    Deixa-me ver os teus olhos
    com o tamanho do mundo,
    tão acesos pelo espanto
    com que acolhes o canto
    do silêncio vagabundo.

Como Eu não sou o Rappaport, também esta peça acaba por ser, de algum modo, uma valsa dançada ao compasso dos mistérios da vida: por vezes adagio, outras allegro e allegro ma non troppo. Com o sorriso de uma comédia e, também, o suspense de uma tragédia, pois há alturas em que o riso e as lágrimas brotam da mesma fonte e se confundem nas suas raízes e nas suas expressões.
Mas Quero dançar o poente é, sobretudo, um hino à esperança que cintila com todo o seu fulgor na pele marcada pelas rugas do tempo e pelas cicatrizes da vida. Por isso, nesta peça, através dos gestos de quem se recusa a acreditar que o amor tem prazo de validade, dançamos o poente como se fosse um nascer do sol todos os dias novo e todos os dias diferente.

Paradela da Cortiça, novembro de 2021
João Maria André