Puta de vida: um olhar da vida para o palco e do palco para a vida…
Durante 25 anos de actividade, o trabalho teatral da Cooperativa Bonifrates, apesar de assente num repertório aberto, condicionado naturalmente pelos encenadores com quem tem trabalhado e que têm sido sempre interiores ao próprio grupo e sócios da cooperativa, apresenta uma identidade no seu projecto de intervenção cívica e cultural: levando à cena António José da Silva ou Molière, Sastre ou Jarry, Lópes Mozo ou Jorge Amado, Dario Fo ou Herb Gardner, a nossa forma de fazer teatro foi sempre, simultaneamente, uma forma de estar presente na “cidade” com um olhar atento e crítico para a sacudir com o riso que diverte, com o toque que desperta ou com a utopia que rasga possíveis nas fronteiras com o ainda-não. Assentámos sempre o nosso trabalho que trouxemos a público em textos já feitos, quando muito dramaturgicamente reelaborados a partir das preocupações cénicas do grupo e dos seus coordenadores. Se, em alguns momentos, convidámos autores para um trabalho de escrita teatral para o nosso grupo, não chegámos a levar à cena o que resultou desses convites.
Ao dobrar esta esquina do tempo em que se pode dizer que uma cooperativa (e, neste caso, com maior razão, uma cooperativa de teatro) entra já na idade madura, decidimos optar por uma outra metodologia: convidámos um encenador exterior ao próprio grupo, A. Kowalski, para trabalhar connosco um novo espectáculo. O universo que lhe propusemos como ponto de partida foi o do livro de Isabel do Carmo e de Fernanda Fráguas, Puta de Prisão. Estudos recentes sobre a realidade da prostituição em Portugal, sobre a prostituição em Coimbra e, mais especificamente ainda, sobre a prostituição na população universitária inscreviam o tema na ordem do dia. Contactada a Isabel do Carmo, contámos com a autorização para nos socorremos do seu texto. E lançámo-nos nesta aventura de que sabíamos apenas o princípio, mas de que não conseguíamos imaginar o fim.
Pelas primeiras sessões de trabalho, pudemos aperceber-nos de como, datado como era o livro escolhido para ponto de partida, se continha ainda fios que nos ajudavam a percorrer alguns labirintos actuais da vida da prostituição, continha muitas outras referências cuja inactualidade era evidente (a começar pelo facto de a prostituição já não ser crime — o que não impede que se encontrem muitas prostitutas nas prisões por condenações devidas a outros crimes colaterais…). Entre abandonar o projecto inicial e reinventá-lo num trabalho colectivo, optámos por esta última solução. E, sempre sob a coordenação do A. Kowalski que ia obtendo o apoio da Cadeia Penitenciária de Coimbra para as entrevistas que o ajudavam a situar-se no coração do espectáculo, fomos descobrindo personagens, inventando situações, resgatando histórias de estranhas memórias em que nos perdíamos no humano que há dentro de cada ser e também no mais trágico e no mais poético de que se reveste a sua existência. E assim nasceu uma peça sobre a roda da vida que dança rodando, no palco do mundo, que o tempo não pára e que o homem não finda. Sobre formas de vida, de vida humana, escritas no corpo de quem é mulher. Uma peça sobre corpos vendidos, corpos espancados, às vezes espantados, despertos e vivos ou apenas morrendo, entre sonhos e frios, gestos e gritos, manhãs sem luar e noites sem dias. Uma peça em pedaços, com peças de vida, com vidas dispersas e rumos infindos…
O nosso problema foi sempre, desde o início, o de como acabar a peça, ou o de como passar esta fronteira entre o palco e a vida que no palco se dobra, inventa e replica. Ainda agora, não sabemos. Mas esse foi sempre também o problema do teatro de todos os tempos. Outras épocas tentaram resolvê-lo com catharsis e com os seus deuses “ex machina”… Mas, ainda aqui, hoje e agora, mais não somos que humanos. Os deuses, já quase os esquecemos e só temos os nossos gestos, os nossos corpos, as nossas palavras. Ah, é verdade, e também os nossos silêncios. Essa forma tão antiga de estar em cena, sem nunca sair de cena.
Março de 2005
João Maria André