Do encenador ao espectador
Escrita em 1983 esta obra de Sastre até hoje por representar – mantinha-se intacta na sua intencionalidade (bem expressa nas sucessivas notas com que o autor a procura explicitar) até ao momento em que começámos os ensaios da leitura.
Poderá o espectador mais distraído não percorrer os materiais que coligimos no programa e julgar que a peça está irremediavelmente prejudicada pelos recentes acontecimentos que alteraram o xadrez internacional e, mais particularmente o europeu neste final da década de 80.
Pode ainda colocar-se a questão (que não é académica!) do espectador não se preocupar com o que se passa à sua volta! Hipótese não de excluir quando por toda a parte se anuncia o fim da história, o fim da ideologia, o fim de tudo…
Julgamos, no entanto, que o tema central – o núcleo “mitológico” – desta peça continua a ter plena atualidade. Mais: veremos se esta “tragédia” de Sastre não assinalará, no plano da ficção, uma notável antecipação do que pode ser a extensão do paradigma do controlo sofisticado a outros espaços geográficos.
Se assim acontecer, Os Homens e as Suas Sombras terão rompido as barreiras da criação situada para se assumirem como grande tragédia sobre “quem controla quem” nas sociedades “altamente desenvolvidas “tecnologicamente avançadas”, colocando a técnica ao serviço da liberdade individual (individualista?) dos incautos cidadãos.
Como muitos, também eu penso que não haverá mais lugar para as polícias de estado”, sobretudo com as características mais que tipificadas pelas sucessivas caricaturas que a história já nos legou… E no entanto existiram!
Graças aos media assistimos com beatífica candura (ou pérfida indução) ao que se passa na Roménia, no Panamá, no Afeganistão, na Nicarágua, nas Filipinas, no -Chile, etc., etc… Vamos de um ponto ao outro do globo nos fios do satélite… Talvez nunca como hoje saibamos tudo; tanto de tudo; e, afinal, apenas a parte que querem mostrar-nos de um todo muito mais complexo.
Sabemos como a informação planetária é dominada por dois ou três impérios que “desinteressadamente” colocam os seus capitais ao serviço da informação objectiva. Tudo está em nossa casa. As transmissões live no alucinante mundo da comunicação parabólica tudo nos oferecem: do circo da fórmula um, à eleição da Miss Universo, a par da “pacífica” invasão do Panamá, ou (menos mostrado!) o quotidiano sacrifício das crianças da intifada em territórios palestinianos…
Este (quarto) poder saído da caixa que transformou o mundo já, no entanto, transferiu as testadas capacidades da tecnologia para domínios mais pessoais e perigosos! Gravam-se cassetes que podem comprometer o futuro político de homens em ascensão; vê-se quem toca à campainha dos nossos apartamentos graças à discreta câmara que controla o acesso aos inóspitos castelos de betão em que vivemos…
Nixon falou para fitas magnéticas cuja existência desconhecia; Noriega parece que possui cassetes vídeo, secretamente gravadas, comprometedoras para altos fun-cionários da Casa Branca…; o primeiro-ministro japonês demitiu-se por uma gheixa ter feito queixa… O caso ficou por aqui mas não se sabe se a “acusadora” não possuía elementos comprometedores (e tecnicamente registados) sobre mais um “affaire” amoroso.
O primeiro-ministro deste país veio à televisão defender da calúnia ministros seus, “supostamente” visados em documentos videografados e magnetofonicamente registados…
A privacidade passou a ser usada publicamente e colocada ao serviço da destruição pessoal e/ou do controle da nossa liberdade que, afinal é uma liberdade vigiada! Os jornais vivem disto; o puritano cidadão alimenta-se, indigna-se e depois esquece.
O poder-dos-olhos-que-não-vemos, urna vez desaparecido o polícia de gabardina, chapéu e atento leitor de um jornal esburacado para melhor ver o que se passava na mesa ao lado, pertence já ao imaginário literário-policial.
Concluiu-se que se pode espiar com melhor rentabilidade de meios e maior eficácia nos resultados. Sobretudo, a memória descritiva sobre cada cidadão é mais facilmente acumulável no pequeno espaço de urna qualquer base de dados do que nos antiquados ficheiros cuja destruição sempre deixava rastos…
Contra este terrorismo do espírito, secreto e oculto polícia de todos e de cada f um, muitos se insurgem, inclusive de forma violenta. Mas a verdade é que neste entrecruzar de linhas policiais (quem é polícia? quem é suspeito?), o pacato cidadão que a maioria de nós não gosta de ser revistado à entrada de um avião, fotografado numa multidão, ver vigiados os seus passos através das inúmeras fichas que tem que preencher sempre que sai de casa: no hotel, no banco, inclusive nos campos de futebol…
Os bodes expiatórios da tragédia de Heizel foram encontrados após visionamento da transmissão televisiva; os barões da droga escondem o rosto perante as câmaras; nas manifestações são muitas as mãos que cobrem o rosto quando dão conta que estão a ser filmados; os polícias que reprimem evitam o olhar “mecânico” das câmaras…
Os olhos humanos – durante muitos séculos considerados as janelas da alma -têm agora duplos mediáticos. Enquanto dormem, outros e outros trabalham por si. E se Deus não dorme, os media assumem-se como cumpridores e zelosos pequenos deuses caseiros, ao serviço das causas nobres como a liberdade. a defesa dos cidadãos, a democracia plena…
Este pois, o IV Reich que se quisermos desviar-nos dos referentes directos invocados por Sastre, nos domina, sobredetermina e predomina. Mesmo que se esqueçam as leituras de Aldous Huxley, Çapeck, Orwell ou Roezler, o império da vigilância laica e fria dos olhos “neutros” e “informáticos” traduzir-se-ão na prática por uma desumanização a que ninguém pode ser insensível.
Depois… depois é esperar pela apoteose dos resultados que sempre acabam por se traduzir na acumulação litúrgica dos dados para uma suspeita. E porque em última instância essa interpretação é feita por homens e recai sobre homens acaba por se assumir como uma nova versão de destino a que os gregos chamaram moira e os latinos fatum. Aqui reside a essência da tragédia porque surge como inapelável e irreversível.
Por tudo isto Os Homens e as suas Sombras julgo poder ser lida com plena actualidade e valor premonit6rio no início da década de 90.
Oxalá se inquietem!
p.s. – Como sempre ignoro qual o acolhimento crítico que o público vai dispensar a este trabalho. A efemeridade da vida do espetáculo esgota ao mesmo tempo que atualiza, o silencioso trabalho preparado neste caso ao longo de quatro meses.
Queria deixar expresso aos meus companheiros de aventura a certeza de que, no momento em que a Cooperativa completa dez anos de vida, o simples facto de ter sido possível levantar este espetáculo é a prova da nossa coesão.
A todos os que a ficha técnica comtempla – e a algum outro que por lapso involuntário nele não figure – reconheça-se o mérito do trabalho assumido com dignidade e a coragem do desafio aceite neste tempo de concessão à facilidade.
* José Oliveira Barata
Veja ainda a crítica de Manuel João Gomes no Público (11-12-1992)