A proposta da Bonifrates para O Médico à Força, de Molière, corre em busca do puro e imediato divertimento. E porque não rir, se a realidade, à beira do absurdo e da caricatura, nos ofende? Há gargalhadas que nos ensurdeçam, mas há também o riso que ao soar estridente, nos ajuda a ouvir, e, sobretudo, nos dá dignidade e liberdade.
A Commedia dell’Arte celebra nas suas máscaras uma paixão nova pelo ser humano. Máscaras e bonecos em que se fixam e excedem as faces e os gestos, os vícios e as virtudes, os versos e os reversos dos indivíduos. Como reencontramos nas duplas de clowns, no Charlot, em Buster Keaton, em personagens de Fellini…
Mas, mais que esta técnica ou aquele estilo, a nossa inspiração e a nossa matéria de trabalho n’ O Médico à Força foram as ínfimas verdades que se libertam na farsa. A força de Molière, como daqueles outros praticantes da farsa, é a sua capacidade para, na sátira impiedosa, no retrato desencantado da paisagem humana, fazer-nos rir das mentiras humanas e, assim, libertar-nos para ver a realidade funda das coisas.
A matéria da farsa O Médico à Força é a mentira. Depois de uma cena doméstica (entre a violência e o jogo de sedução) com a sua esposa, Martinha, Esganarelo é envolvido numa trama urdida por aquela para se vingar, fazendo-o passar por um médico famoso, capaz de curar a mudez da filha do senhor Géronte. Esganarelo não resiste ao apelo do dinheiro, como não resiste aos encantos da criada Jacqueline, o que não agrada nada ao seu marido, Lucas. Mas a filha do velho viúvo não está, de facto, doente; antes procura contrariar a ganância paterna e casar com quem realmente ama, um homem de expedientes duvidosos mas de futuro auspicioso… Todos enganam todos, todos escondem alguma coisa.
Molière, através do poder da farsa, retrata a farsa do poder. De vários poderes, o de curar, o da palavra, o da mentira… E é na figura do médico que tal retrato concentra o seu foco. O medo da morte coloca o médico sobre um pedestal, acrescentando ao poder técnico (quase-divino) da sua função, um cada vez maior poder simbólico, social e económico. Tal concentração de poder atrai a tentação da fraude e do comércio. E no discurso médico, incompreensível para os outros, revela-se toda a indiferença pela saúde dos pacientes.
Mas o Esganarelo em O Médico à Força não é só a máscara de dottore, de poderoso, de senhor-do-mundo, de Palhaço Branco… Ele é também zanni, vítima, zé-ninguém, Augusto… Na sua condição de criado rústico, Esganarelo sobrevive de expedientes e dos frutos que a vida deixa cair à sua frente – recolhe lenha e vende-a aos molhos. É naturalmente dado a agarrar a vida que lhe passa à frente, é um oportunista. A única coisa que para si vale é o prazer. Como um aprendiz de feiticeiro ou um aventureiro, Esganarelo embarca no jogo de que não entende as razões profundas mas que, rapidamente, resolve jogar em proveito do seu prazer. Joga o jogo dos poderosos, dos vaidosos, dos donos da palavra, do saber e da própria vida. Finalmente, o castigo abate-se sobre a sua cabeça, pela ousadia e pelo excesso da sua mentira e da sua soberba. Mas com um novo simulacro, o da justiça…
A peça avança de simulacro em simulacro. Na verdade, não o esqueçamos, Esganarelo é médico, à força. É enganado-enganador-enganado. E, no final, Molière reserva-nos ainda a ironia suprema. Quando o dinheiro vem mostrar a sua capacidade para harmonizar dos interesses e juntar as vontades, Esganarelo declara a sua adesão à profissão médica. Assim, a amoralidade provocatória da máscara de Esganarelo e da farsa O Médico à Força mostram, no seu movimento final, a verdade nua e crua da miséria humana.
João Paulo Janicas