O desejo de colocar em cena O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá nasceu da moralidade em questão na fábula, do envolvimento de maravilhoso cósmico em que ela é contada, da brincadeira poética na escrita do autor. Ora bem, dito isto pouco mais haveria a dizer, se a adaptação teatral e a encenação do livro de Jorge Amado não o transformassem necessariamente noutra coisa…
Em primeiro, transformar a linguagem da acção escrita em linguagem de acção feita em cena, deixa-nos (neste caso? sempre?) a sensação de ter perdido algo da tal brincadeira em que se entretém constantemente a mão poética do escritor; quando vemos o texto literário posto em cena, essa falta é, na melhor das hipóteses, metamorfoseada em luz e sombra, som e silêncio, espaço e movimento…
Depois, quando à fábula cósmica de Jorge Amado se juntou a poesia política de A invenção do amor, de Daniel Filipe, foi para tornar claro a questão moral de fundo que está velada no amor (im)possível do Gato Malhado e da Andorinha Sinhá: o conflito entre as rígidas leis da natureza e a possibilidade do amor (uma invenção da cultura humana) tem o seu simétrico no conflito entre as leis da sociedade humana totalitária e um amor inventado. Tanto num caso como noutro, a invenção (natureza essencial do humano) é a transgressão e o perigo fundamentais que nem o Papagaio da moral animal nem a moral da voz que domina na Cidade podem admitir. A tensão entre o amor/a invenção e a norma ganha assim luz…
Posto isto, vem a estrutura cíclica do espectáculo, que corresponde à circularidade dos dias, das estações do ano, do cosmos, da vida humana… Eterno retorno real? Circularidade aparente? Fragmentação? Um círculo que pode ser quebrado? Evidentemente, estas questões obscuras, ao teatro interessa mostrar, não responder. Postas em cena, configuram-se tanto no esquema cenográfico (ao mesmo tempo circular e fragmentário), como na volta dramatúrgica que leva o espectáculo a acabar com um recomeço (mas que já não é exactamente igual ao princípio).
A música de Heitor Villa-Lobos traz de volta a cor à depuração do natural que operámos nas personagens e no espaço (em Jorge Amado temos animais que vivem num parque; aqui são pessoas que convivem num qualquer pátio citadino), permitindo reabrir a palete dos sentimentos, prolongar as palavras e suportar os movimentos.
A Voz na Noite, ao mesmo tempo coro e materialização da opressão, emerge nas palavras de Daniel Filipe como a eminência parda que espreita e vela, guardiã de uma moral qualquer que é, antes e cada vez mais, totalitária porque se impõe em toda a parte –não só no espaço público de uma cidade em ditadura, mas também no espaço íntimo das nossas consciências, que adormecem à televisão enquanto a voz do locutor dita a realidade.
E então? Então, vem de novo a Manhã… E com ela, apesar de tudo, a lembrança de um sonho em que, afinal, a Andorinha fugia com o Gato, para algures onde o (seu) amor era possível… E o Tempo, enfim, doente e velho, nos conceda ainda a rosa azul que medrou há muitos séculos…
João Paulo Janicas