Notas da encenação
O companheiro Rui Damasceno é o ator santo patrono deste espectáculo. Há uns bons dez anos, passou-me para a mão um monte de títulos do Vilhena: «Temos de fazer uma peça com o Vilhena! Um espectáculo assim com muitas mamas e cus, e aquelas caras e narizes dos desenhos… Faz lá isso!» Li-os ou reli-os logo, todos de uma assentada, fiz um esquema da adaptação e escrevi a 1.ª cena. Depois, ficou de pousio…
Há um ano atrás, disse ao Rui: «Desta é que vai ser!» Trocámos umas ideias. Ele, coerentemente, rugindo os mesmo princípios “estéticos” para o espetáculo… Eu, com cautela, empurrando as opções concretas para mais tarde, para os ensaios de palco… E o grupo, quando lhe apresentámos o projeto, levianamente, sequioso que estava de comédia e animação, convenceu-se que era um bom projeto…
Começámos: reler, projetar cenas, imaginar espaços e soluções, maquinar a distribuição, escrever… Uma carga de trabalhos: adaptar para teatro a narração novelística dos três volumes da monografia; integrar os mais importantes episódios da saga do herói, ao longo de várias décadas plenas de peripécias, encontros e recontros, com mais de 50 diversíssimas personagens; narrar a estória, sem perder a história, no Portugal clerical, do caciquismo e do compadrio, do período da ditadura; e ainda fazer jus ao génio do autor, na pilhéria da linguagem e no traço do desenho, no pícaro das situações e na exemplaridade dos tipos, nas alusões pessoais e nas referências contextuais…
O resto é uma estória banal. Inspirado na trilogia “O Filho da Mãe”, de José Vilhena, o espectáculo narra a estória de Justino Freitas, filho (apenas à face da lei e da boa moral) do influente comerciante da pequena aldeia beirã de Covões de Baixo, durante as décadas finais da Ditadura, desde a sua conceção e auspiciosos primeiros anos de vida, até aos píncaros do poder na capital do Império. Ao longo de uma fulgurante, mas meticulosa, ascensão, beneficiando e usando com mestria os expedientes do compadrio, da “cunha”, da impostura e da traição, o “nosso herói” pisa, desavergonhadamente e com igual desembaraço, todos os que encontra pelo caminho, de modo a galgar um a um os degraus que o levam ao sucesso… seja na escola ou no seminário, na cama alheia ou no emprego, nos negócios ou na política… Justino Freitas (e, diria, cada uma das restantes personagens desta estória) é uma personagem meramente bidimensional, à semelhança das ilustrações do autor. Assim, através de uma representação caricatural, a traço grosso e aumentado, retrata-se a realidade de um modo óbvio, direto e definitivo. Nesse aspeto, não poderia ser mais eficaz. Mas nesta simplicidade (e através dela) a representação dos atores quer mostrar outra coisa: a dimensão de duplicidade que cada personagem transporta, escondida, sob a face que exibe. Justino é o campeão da dupla face, da hipocrisia. É certo. Mas cada uma das restantes figuras, quase sempre, para além do que mostra aos outros, esconde algo mais, que não quer (ou não pode) mostrar-lhes; normalmente (e é aí que “morde” a crítica de José Vilhena), os seus interesses mais egoístas, o mais “feio”, o disforme, o degradante, enfim, a miséria humana e social…
João Paulo Janicas
Coimbra, 27-01-2019