NOTAS PARA UMA ENCENAÇÃO
“Meio festa popular, meio apocalipse, a luta entre Dom Carnaval e Dona Quaresma transforma-se e vai-se convertendo noutro combate de dimensões mais quotidianas, como se saísse do quadro e nos mostrasse a outra luta, paralela, que se desenrola dentro de nós próprios, entre essas duas forças gigantescas, a apolínea e a dionisíaca, a vital e a do outro mundo, a carne e o espírito, a liberdade e a repressão, a festa e a tristeza, Eros e Tánatos, quer dizer, a cara e o cu da nossa existência.”
(J. L. Alonso de Santos, O Combate entre Dom Carnaval e Dona Quaresma)
Carnaval … Quaresma. .. Mas que Carnaval? Que Quaresma?
Se fizéssemos um percurso pelas raízes históricas e plastificações epocais do Carnaval, veríamos que um dos seus traços identificadores foi a “regra desregrada” de o mundo às avessas. É evidente que tal leit-motiv remete inevitavelmente para a questão do poder, do seu exercício, das suas máscaras e das suas representações.
No quadro medieval e renascentista, o Carnaval, vivido, num específico tempo, como festa, significa o momento privilegiado para a subversão de um poder que tem também o seu momento forte, mais prolongado: a Quaresma. Esse poder, numa época em que a sociedade civil era sobredeterminada pelo plano religioso, identificava-se obviamente com o poder da Igreja. E se espacialmente ele estruturava a geografia do profano através da sua polarização pelo sagrado, temporalmente repercutia-se na organização cíclica da vida quotidiana pelo tempo litúrgico da festividades cristãs. Mas, nem por isso, o homem medieval deixava de sentir permanentemente dentro de si a tensão entre o Carnaval e a Quaresma, organizando-a ou equilibrando-a no(s) tempos(s) e no(s) espaço(s) com que se tecia a sua existência
Mas se Quaresma e Carnaval são as gigantescas forças que se cruzam e entrecruzam no nosso existir, se elas definem o homem enquanto cara e cu (ou cu e cara) da nossa existência, é óbvio que no mundo actual e neste tempo que vivemos & encontram igualmente materializadas com a diferença histórica que caracteriza . sociedade modema. Sociedade secularizada, em que o sagrado se emancipou do profano, em que o Poder já não é, na sua mais elementar acepção, o poder religioso Em que o devir temporal já não é marcado pela circularidade do ano litúrgico.
Assim, ganha sentido perguntar: Que Quaresma? Que Carnaval?
A sociedade actual já não é estruturada, em última análise, pelo poder à Igreja. Todavia, não dispensa a sua nova religião, a tecnociência, e o poder que eL exerce, a tecnocracia. Os tecnocratas, os nossos Yuppies de todos os dias, são d, sacerdotes da Quaresma no mundo contemporâneo: neles se reflecte o sado masoquismo da renúncia, a frieza orgásrnica do número, a neutralização da festa, c cálculo programado do limite. Os tecnocratas modelam-se e modelam-nos na tradiçãl quaresmal de uma religião secularizada. Mas essa modelação, exercendo-se através d; repressão da Criatividade, da imaginação, do excesso, do(s) desejo(s) e da sua inscriçãc no(s) corpo(s) não pode, todavia, abolir a outra dimensão que teima em reprimir. E 1 neste contexto que gera espaços privilegiados e tempos específicos para a sua expan são: nos bares, pubs e discotecas, nos bordéis (mais ou menos finos, com esses 01 outros nomes) acontecem “noites-de-fim-de-semana” em que o nosso Carnaval quo tidiano se expande. Um Carnaval talvez pobre, corno pobre é a religião quaresma . tecnocrática à qual se contrapõe. Mas Carnaval … O nosso Carnaval de todos o dias… O nosso Carnaval de todas as semanas … Saudoso talvez de urna outra face: preisarnente aquela que o liga à imaginação e à criação e de que os artistas serão o símbolo actual, ostentando o estandarte do seu mundo, o mundo do mundo às avessas…
Carnaval… Quaresma… somos nós, dia-a-dia.
Carnaval … Quaresma… estão em nós, em cada dia, mas tão embrulhados nas suas máscaras, que até os seus próprios rostos já se confundem!
João Maria André