Michel Foucault: “O olhar exige poucos gastos. Não são necessárias armas, violência física, coacções materiais. Basta um olhar. Um olhar que vigie, e que cada um, sentindo-se pesar sobre si, acabe por interiorizá-lo até ao ponto de se vigiar a si mesmo. Cada qual exercerá esta vigilância sobre e contra si.”
No horizonte desta palavras, num acolhimento sombrio, desenha-se o perfil do filósofo inglês J. Benthan (1748-1832) e a sua construção ideal, o panóptico. O panóptico é uma prisão, construída de modo a que todos os presos sejam visíveis a qualquer momento. Uma prisão ideal, portanto – no sentido em que dispensa a violência física, a tortura, e por isso (ponto capital!) resguarda os prisioneiros de si próprios; não lhes permite o espaço de um pesadelo, o silêncio de um choro, o tempo de uma revolta.
Que este princípio da visibilidade total, da absoluta transparência dos actos de cada um perante outrem – tópico recorrente em toda a história das ideias – tenha sido esta concretização carcerária dá que pensar.
Para uma tal reflexão nos transporta, agora, peça “Exercícios para equilibristas” de Luís Matilla. Uma reflexão incómoda.
O primeiro motivo de incomodidade: o percurso da vigilância. O observador, num primeiro momento, vigia fora de casa. E ao que assistimos é à progressão da vigilância, à progressão material (de fora de casa para dentro de casa, de um canto da casa para a cebeceira da cama) mas principalmente à progressão pelos interiores do mundo de cada indivíduo, da linguagem à memória, do corpo ao desejo.
O segundo motivo de incomodidade: o objecto da vigilância. Dizer que se trata, aqui, do problema da habitação é certo mas é pouco. A menos que problema signifique “condições” e habitação signifique “existência do mundo”. Dito por outras palavras: trata-se, aqui, de interrogar as condições contemporâneas da existência concreta no mundo, incluindo nelas, como dimensões constituintes, a intimidade dos gestos, o silêncio doas afectos. Construída sobre o modelo da visibilidade que identifica saber e ver (como se os outros sentidos não fossem também, precisamente modos de chegar ao mundo), a habilidade é uma promessa incumprida, exposta à permanente possibilidade devastadora de um olhar que (Sartre dixit) ao realizar-se nos despoja de uma particular relação connosco.
O terceiro motivo de incomodidade: o desdobramento de olhares sentido pelo espectador. Porque também nos olhamos, sempre. É também olhar e ver o problema do espectador. Mas talvez este olhar, o nosso, de cada vez que o teatro começa, possa exprimir que nem todo o olhar é vigilante, privador. Que será possível, como na pintura, ver para entrar num mistério e não para resolvê-lo.
Virgílio Ferreira: “hoje as casas não se constroem já com aquelas pequenas janelas e aqueles muros grossos, que nos separavam realmente o viver íntimo do viver público. Hoje constroem-se com largas vidraças a substituir essas paredes.”
Exercícios para Equilibristas (1992)
Exercícios para Equilibristas, de Luís Matilla: palavras, ruídos, sugestões que caminham para um texto, à procura do seu palco. Imagens que avançam em direcção a nós, invadindo o nosso palco. Sons, cuja forma se adivinha na sua invisibilidade. Presenças e ausências que se ouvem na fala sincopada do silêncio.(…)
O circo da vida é reduzido (ampliado) ao exercício num trapézio, ao percurso no arame. Sem rede. Quem mora no equilíbrio do título feito espectáculo? Os actores? As personagens? O espectador? Equilibristas: quem?(…)
A essência do teatro está no olhar. A essência deste teatro está no olhar. É o olhar que percorre a casa nua, que ensaia o prodígio de a preencher, como é também o olhar que vigia os gestos dilacerados pelo espanto, as angústias que escorrem húmidas no vazio, feito quase noite, sem janelas, ao fundo duma clarabóia. (…)
O olhar torna-se espaço. Habitação. É no olhar que se habita, mas sobretudo, é o olhar que nos habita. Um olhar sem sujeito. Porque de todos os sujeitos.(…)
Do olhar ao nada vai apenas a distância de um nó. Que se aperta e desaperta na sufocada respiração de passos multiplicados pelo eco na memória dos dias.(…)
Este é um olhar sem cor. A preto e branco. As cores moram à margem do espaço. Nos passos. Ao fundo: à margem da razão. Irracionais. Á margem.(…)
Ver este teatro é olhar a habitação. O que é apenas um outra forma de dizer: ver se este teatro é habitar o olhar. E, no fim (quem sabe?) sorrir. Um sorriso cinzento. Húmido. Frio. Um sorriso, também ele, sem cor. Ou melhor: da cor do tempo que transpiramos.