Nota do encenador
Velhos sentados num banco de jardim… O tempo parece suspenso nas horas imóveis do parque, no outono esquecido da vida. Adivinham-se as voltas do mundo na música que vem de longe, da infância ou do futuro, e que nos vai ensinando que “a beira do fim é tão preciosa como a beira do princípio”. Aparentemente, tudo está parado numa peça sobre a fronteira em que a vida quase se despede de quem quase se despede da vida. Mas “Eu não sou o Rappaport” é teatro que subverte as aparências, mostrando como a vida se inventa em cada palavra e em cada gesto do entardecer.
Sinopse
Dois velhos, judeus, sentados num banco de jardim… Poderiam ser o palhaço rico e o palhaço pobre, ou Arlequim e Pierrot, ou Vladimir e Estragon à espera de Godot… Mas, sem deixarem de ter um pouco de cada um destes pares de personagens, Nat e Midge são, sobretudo, D. Quixote e Sancho Pança, nas suas tensões, na sua complementaridade, no seu jogo perante o mundo, nas contradições de que se faz o seu e o nosso carrocel da vida. É por isso que esta peça não é apenas uma comédia, nem é apenas uma tragédia, mas é uma comédia às costas da tragédia e, simultaneamente, uma tragédia vestida de comédia. É o riso cravado no drama do quotidiano. É o sonho encenado no realismo da existência, o inconformismo que tropeça nas rasteiras da idade, o humor que rasga, com a sua ternura, as certezas cinzentas do dia-a-dia de quem aparece condenado a esperar que o dia anoiteça.
Um velho, porteiro reformado, prestes a ser arrumado no baú das recordações, a contar com mais um dia depois do dia que aí vem: “Somos velhos, não somos ricos e cometemos o pecado de viver devagar”. Outro velho, comunista, ainda e sempre, com a fé suficiente para mudar o mundo e salvar os homens: “as ideias continuam a ser boas e belas, as ideias mantêm-se, são melhores que as pessoas que lhes deram origem”. E desfilam pela cena pedaços da cidade que lhes pertence e a que eles também pertencem: Danforth, o Presidente da Comissão de Condóminos, Laurie, ex-toxicodependente, perseguida pelo passador, um Cow-boy, que não quer o nome em saldo na praça pública, Gilley, o puto que “crava” três notas para proteger os velhos de si próprio, e Clara, a filha de Nat, que se esqueceu dos seus ideais revolucionários e o quer pôr num lar de terceira idade, para poder chegar tranquila ao fim da semana. E, perante este desfile, Nat, o Dom Quixote do Central Park de New York, arrasta Midge, o seu Sancho Pança, para o teatro em movimento, o teatro dentro do teatro: “a gente serve-se da personalidade que dá mais jeito na ocasião”: espião, advogado, capitão da polícia, chefe da Mafia, deputado jubilado, tubarão de Hollywood…
Midge e Carter, protagonistas de “Eu não sou o Rappaport”. Dois velhos, nos seus corpos quase parados num banco de jardim. Mas vivos, “autênticos milagres da natureza”. Tudo menos inúteis: “Digam-lhe que é lento ou que é estúpido, mas se lhe dizem que é inútil isso já é um pecado, um pecado contra a vida, é fazer aborto pelo outro lado.”
Nota final
Nesta peça os protagonistas têm o corpo do seu corpo, mas têm também a força das suas palavras e das suas ideias, que evoluem como personagens numa cena quase vazia: ”Está tudo na cabeça… O corpo andou sempre atrás, à boleia!…”
“ Eu não sou o Rappaport”, mais do que uma peça sobre o entardecer da vida, é um hino à capacidade de a inventar no palco dos nossos sonhos e nos bastidores das nossas fraquezas. Como se as notas soltas de um piano se transformassem destiladamente no realejo de um carrocel em que o dia recomeça…