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O Escurial (1989)

Um Palácio conhecido: O Escurial. Um Rei; um Bobo; um Carrasco; Cães e um Trono. Estes os elementos fundamentais para encenar este jogo macabro que Ghelderode escreveu, que a Bélgica quase não seu pela sua publicação, que a França descobriu pela mão de René Dupuy e Michel Vitold, em 1948, e que Portugal nunca pode ver antes de 25 de Abril por ser uma peça que figurava no índex.

Mas O Escurial é também um extraordinário exercício. De atores; sobre o teatro; sobre a política; sobre as máscaras do poder. Quem é quem, neste jogo à porta fechada? Quem é, de facto, o bobo rei? Será o rei, bobo de si próprio? Estranho, sórdido e, simultaneamente belo, este desafio para qualquer ator: trabalhar com emoções filtradas por um corpo que parece deslizar sobre o gume da lâmina do machado do carrasco que todos temos em nós. Na criptas do palácio agoniza e morre uma rainha. Ausente, mas sempre presente; o eminente desaparecimento físico da Rainha é o pretexto para despoletar este combate em três assaltos onde, simuladamente, se aceita, por momentos, a derrota à espera da vingança definitiva… Oscilando entre festa barroca, ritual sanguinário, farsa de máscaras grotescas, O Escurial, sendo um texto aparentemente linear na sua tessitura dramática, oculta muito mais do que revela. Por isso perturba.

Por isso, quem se propõem fazer O Escurial não escapa aos riscos que a peça contém na sua essência. À mínima hesitação estes atores-trapezistas podem cair desamparadamente no ridículo sem que tenham a rede protectora da benevolência dos espectadores. Uma rede mal urdida porque os fios da crueldade com que se tece não lhe dão consistência; também porque, mesmo no final da peça, talvez ninguém tenha simpatia por ninguém pois uma hora de exposição à luz é pouco para deixar ver os verdadeiros contrastes de personagens que parece terem prazer no auto-suplício, num estranho e milimétrico karaté psicológico.

Neste palácio onde o amor está interdito – como diz o Rei – e onde as horas passam numa alucinação gélida – como diz o Bobo -, o tempo escoa-se a um ritmo mais que cardíaco perante o olhar (ausente? Disfarçado?) de um Mal que, se apressa a decadência física, ajuda a desvelar, no estertor da morte, a candura de criança a par com a crueldade insinuada na hipocrisia; o cúmplice jogo de indefinidos limites entre Amor e Ódio.

Estes monstros humanos peregrinando por lugares infectados sob o olhar glacial de uma rainha estrangeira (no sentido de estranha) na sua própria pátria, parece só encontrarem a sua autenticidade na representação do que julgam ser (talvez sejam; serão?). Assim, o teatro é para estas estranhas e bizarras personagens, o único instrumento para se revelarem. A sós e no fechado espaço existencial (também existencialista?) que é palco da vida, palco do poder e dos poderes, que cada um utiliza e maneja sempre que se sente (e pressente) que ferir é o maior gozo que encontra no universo satânico que deliberadamente constroem e aceitam. A obra de arte não se explica. Esta nota só pretende justificar as apreensões com que se parte para um texto tão denso e importante no teatro europeu.

Para além deste universo depressivo fica-nos o exercício de teatro, numa peça cuja carpintaria é calibrada e regulada por mecanismos de precisão em tudo semelhantes ao dos enormes relógios das catedrais barrocas. No entanto, o acerto e regularidade com que tudo se movimenta esconde o caos. Neste caso o caos de uma modernidade “expressionista” fundida com elementos de um imaginário flamengo, Bruegheliano, que Ghelderode que não podia ignorar e que, sabiamente, e por mais de uma vez, combinou com as cores decadentes de uma Espanha/Século de Ouro.

Mas não é caso para ficar deprimido… A vida continua… diz-se. Aceitá-la como representação é apenas – e quantas vezes! – só mais um expediente para a tornar mais suave; ou como no diálogo da peça:

FOLIAL: Vós sois um grande ator.

REI: Somos grandes atores! Basta! – a farsa terminou.