Nome de homem, história de vida e de vidas…
Nota do encenador
A nossa vida é feita de nós, laços que começam muito cedo, nos cordões que nos ligam aos pais, aos irmãos, ao lar e que a vida vai dobrando e multiplicando na teia dos afectos que nos atam aos outros, às coisas, ao mundo e ao tempo. Tecemo-nos na vida (ou é a vida que nos tece?) como Penélope tece o seu manto à espera de Ulisses. Tecemo-nos e entretecemo-nos. Mas, como Penélope, também a vida, por vezes, nos desfaz e desfaz as nossas teias nas mesmas curvas do tempo. E, como nas malhas de uma renda, atrás de um nó que se desata, é toda a teia que se esvai na voragem lenta das noites e dos dias. Pode começar pelo emprego, pelo amor, pela saúde física ou mental, pela amizade, pelo pão, pela dor de uma perda, pela pobreza, pelo desespero de um futuro. Pode começar num gesto que nada é e acabar num nada que abarca tudo no seu vazio omnipresente. “Onde é que não se apodrece?…”
Eloídes, nome de homem, é também história de vida. De muitas vidas. Vidas elididas, em processo de exclusão, de desfiliação, de perda da morada (de todas as moradas), de perda do tecto (de todos os tectos), de perda de abrigo (de todos os abrigos). Eloídes é o nome de uma via-sacra com muitas estações: do despedimento à prisão e da prisão exterior à prisão interior (tal como dói mais o frio que nos rasga por dentro, são também mais pesadas as algemas que por dentro nos aprisionam). É um percurso de desconstrução, de desagregação, de erosão e de elisão aquele que se dá em e com Eloídes. “A pobreza, colega, é um poço de que se não sai.”
A espiral da pobreza, em Eloídes, é também uma espiral da violência, uma violência cega, quase sem destinatário, quase sem razão, quase sem autoria, quase sem história. Uma violência quase sem nome. Anónima como as suas vítimas. É uma espiral tão forte que mesmo as frágeis cumplicidades que parecem aproximar fraternalmente companheiros de desgraça vêem-se rasgadas nos passos sucessivos que conduzem os seres de uma vida humana, “ainda” humana”, a uma existência animal, “apenas animal”. “Recebe-me em sua casa, ajuda-me e eu que faço? Roubo-o.” Nas encostas desta via-sacra vão desfilando os vários poderes: o poder económico, o poder religioso, o poder político (sob a máscara da polícia), o poder judicial. Dele vão sobrando “os seus restos”, “as suas margens”, “o seu lixo”, “a sua escória”, tudo isso no esqueleto de um andaime: estrutura de apoio para a construção de algo, de uma “casa”, de um “abrigo”, ou ainda, e mais uma vez, para a sua demolição? Paira somente o sopro de um violino: “Inundarei este nobre lugar com a minha melhor música”.
Adivinham-se, no espaço fora de cena, mas sempre presente em cena, os carris do caminho de ferro. De uma estação fechada. Em ruínas? Em obras? Quem a ela chega, para partir, descobre, subitamente, que afinal já não há comboios para parte nenhuma: “Fiz as malas, vim para a estação disposto a viajar para quanto mais longe melhor. Ninguém me disse que a tinham fechado para sempre. E tão pouco notei que estava deserta, sem comboios nem passageiros.” Quem a ela chega, para ficar, chega a um espaço sem céu nem horizonte: “Para gente como tu, é o inferno.”
Uma viagem sem princípio nem fim, parada no tempo, no tempo parado…
Para os “sem-abrigo”, que Eloídes representa, reclamamos, com esta peça, apenas o abrigo do olhar. O abrigo do olhar dos espectadores, desalojados do seu habitual abrigo, sobre aqueles que parecem não ser mais do que “espectadores do tempo e da vida”, o abrigo do olhar dos cidadãos sobre aqueles que, privados da sua cidadania, tão esquecidos estão da própria cidade, o abrigo de um olhar humano, só por si já capaz de aquecer quem da esperança se esqueceu. “Tenho medo da rua… tenho medo da rua… tenho medo da rua…”
Paradela da Cortiça, Janeiro de 2007
João Maria André