2000

Crap – fábrica de Munições
Como quem faz as contas de um conto…

Por vezes, despertamos ao som das notícias e ficamos a saber que, sem percebermos muito bem como, mais uma guerra estalou num qualquer canto do mundo: a pretexto de conflitos étnicos, em nome de uma religião, para defesa das minorias, para fortalecer a economia com uma política realista, contra a corrupção de quem detém o poder ou contra os direitos de alguns, para garantir a ordem internacional, para acabar com a anarquia, com os olhos postos nos princípios democráticos, como pretexto de desviar as atenções das vidas íntimas de governantes sexualmente frustrados, ou apenas, quem sabe, porque o teor alcoólico do último vodka era inusitadamente elevado…
Outras vezes, depois de assinados acordos de paz, de estabelecidas as bases para uma convivência pacífica entre facções opostas, de decidido o cessar-fogo e programada a desmobilização de exércitos paralelos, reacende-se o terror e assiste-se ao imenso cortejo de deslocados a caminho não da terra da esperança, mas da terra sem esperança em que todas as manhãs parecem igualmente cinzentas, no horizonte de fumo com cheiro a pólvora, a enxofre, a …

Vê-se, então como a guerra, destruindo em poucos dias cidades que demoraram centenas e milhares de anos a serem construídas, alimenta cinicamente o desenvolvimento económico de outros países e de poderosas multinacionais, como se fosse ela, racionalissimamente na sua irracionalidade, de casaco e gravata na sombra dos executivos, ministros da sua invisibilidade, a cabeça de um polvo cujos braços se estendem por todos os campos do globo…

“Isto é como se fosse um novelo. Pega-se na ponta e puxa-se… As nações mais poderosas decidem viver em paz. A paz não é possível, pois antes de verificar os resultados, estala a guerra em quase todo o mundo. Quem foi? Quem financiou os preparativos? Quem pode sair beneficiado? É este o fim do novelo.”

A peça de Jerónimo Lopez Mozo é apenas isso: o puxar dos fios de um novelo em que tudo parece entrelaçado, em que as responsabilidades se diluem, em que os sujeitos parecem ter perdido o nome na economia e na política das sociedades anónimas que são as nossas. Por isso, não é uma peça sobre a guerra. É antes uma peça sobre a fábrica ou as fábricas da guerra. O que significa que, não sendo um teatro de marionetas, é sobre o fundo de um teatro de marionetas que ela se nos propõe.

Ao decidir colocá-la hoje sobre as tábuas do palco, algumas questões se levantaram. Primeira: o seu carácter datado. Ao anos sessenta e setenta percorriam aparentemente cada uma das falas e era inevitável a pergunta: e será que as fábricas de guerra têm data? Se tivermos em conta que só nos últimos dois anos as grandes empresas de armamento gastaram, no Estados Unidos, cerca de cinquenta milhões de dólares no tráfico de influências no Congresso e na Casa Branca e se procurarmos as verdadeiras causas de alguns conflitos que estalaram por toda a Terra na última década não será difícil descortinar as razões que podem fazer de um texto datado um texto ainda actual…

Segunda: a diversidade de registos cénicos, como o coro brechtiano, o jogo psicológico da reunião do executivo Crap, o naturalismo da cena da taberna, a caricatura do quarto do presidente dos estados de uma grande potência… Mas a metáfora do novelo, cujos fios se enrolam em torno do núcleo como os círculos concêntricos à volta do alvo, não seria uma boa solução para respeitar essa pluralidade de registos sem perder a unidade da encenação? Optámos, por isso, por redesenhar a peça quase à maneira do teatro épico: deixando que a representação, em vez de gerar empatias com as personagens em cena, gerasse um processo indispensável à compreensão dos mecanismos que produzem o fundo de que vivem e falam essas personagens estilisticamente pintadas com o traço corrido sobre a fibra de vidro que as empalidece no frio cortante do seu branco ou ainda estilisticamente atiradas para o fundo de uma consciência mal vislumbrada na sobra reticular de uma parede que não é translúcida nem opaca como não é translúcido nem opaco o poder que a constitui.

Crap-Fábrica de Munições não é uma história dos seus números, pois muito, um quadro sobre os senhores da guerra. E uma história dos seus números, pois
Há um polvo que enriquece
Pelos oito cantos da terra…
A sua riqueza cresce
Com os mortos que desterra…
Há um polvo que enriquece,
Um polvo chamado guerra.

Como contraponto, apenas, a voz da exilada, a voz da refugiada, a voz (quase solitária) da canção sem lágrimas:
Sou a voz duma cigarra
Numa manhã que secou…
Trago no ventre a guitarra
Com que a guerra me tocou…
Só a noite nos agarra
Ao que a morte nos tirou!

A memória dos homens é curta… E seria bom não esquecer.

João Maria André

Letras de João Maria André 
Músicas de Amilcar Cardoso 
Voz de Ofélia Libório
Ouça as canções da peça
Canção sem Lágrimas e Canção da Guerra

Ficha Técnica

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    Crap – fábrica de Munições
    Como quem faz as contas de um conto…

    Por vezes, despertamos ao som das notícias e ficamos a saber que, sem percebermos muito bem como, mais uma guerra estalou num qualquer canto do mundo: a pretexto de conflitos étnicos, em nome de uma religião, para defesa das minorias, para fortalecer a economia com uma política realista, contra a corrupção de quem detém o poder ou contra os direitos de alguns, para garantir a ordem internacional, para acabar com a anarquia, com os olhos postos nos princípios democráticos, como pretexto de desviar as atenções das vidas íntimas de governantes sexualmente frustrados, ou apenas, quem sabe, porque o teor alcoólico do último vodka era inusitadamente elevado…
    Outras vezes, depois de assinados acordos de paz, de estabelecidas as bases para uma convivência pacífica entre facções opostas, de decidido o cessar-fogo e programada a desmobilização de exércitos paralelos, reacende-se o terror e assiste-se ao imenso cortejo de deslocados a caminho não da terra da esperança, mas da terra sem esperança em que todas as manhãs parecem igualmente cinzentas, no horizonte de fumo com cheiro a pólvora, a enxofre, a …

    Vê-se, então como a guerra, destruindo em poucos dias cidades que demoraram centenas e milhares de anos a serem construídas, alimenta cinicamente o desenvolvimento económico de outros países e de poderosas multinacionais, como se fosse ela, racionalissimamente na sua irracionalidade, de casaco e gravata na sombra dos executivos, ministros da sua invisibilidade, a cabeça de um polvo cujos braços se estendem por todos os campos do globo…

    “Isto é como se fosse um novelo. Pega-se na ponta e puxa-se… As nações mais poderosas decidem viver em paz. A paz não é possível, pois antes de verificar os resultados, estala a guerra em quase todo o mundo. Quem foi? Quem financiou os preparativos? Quem pode sair beneficiado? É este o fim do novelo.”

    A peça de Jerónimo Lopez Mozo é apenas isso: o puxar dos fios de um novelo em que tudo parece entrelaçado, em que as responsabilidades se diluem, em que os sujeitos parecem ter perdido o nome na economia e na política das sociedades anónimas que são as nossas. Por isso, não é uma peça sobre a guerra. É antes uma peça sobre a fábrica ou as fábricas da guerra. O que significa que, não sendo um teatro de marionetas, é sobre o fundo de um teatro de marionetas que ela se nos propõe.

    Ao decidir colocá-la hoje sobre as tábuas do palco, algumas questões se levantaram. Primeira: o seu carácter datado. Ao anos sessenta e setenta percorriam aparentemente cada uma das falas e era inevitável a pergunta: e será que as fábricas de guerra têm data? Se tivermos em conta que só nos últimos dois anos as grandes empresas de armamento gastaram, no Estados Unidos, cerca de cinquenta milhões de dólares no tráfico de influências no Congresso e na Casa Branca e se procurarmos as verdadeiras causas de alguns conflitos que estalaram por toda a Terra na última década não será difícil descortinar as razões que podem fazer de um texto datado um texto ainda actual…

    Segunda: a diversidade de registos cénicos, como o coro brechtiano, o jogo psicológico da reunião do executivo Crap, o naturalismo da cena da taberna, a caricatura do quarto do presidente dos estados de uma grande potência… Mas a metáfora do novelo, cujos fios se enrolam em torno do núcleo como os círculos concêntricos à volta do alvo, não seria uma boa solução para respeitar essa pluralidade de registos sem perder a unidade da encenação? Optámos, por isso, por redesenhar a peça quase à maneira do teatro épico: deixando que a representação, em vez de gerar empatias com as personagens em cena, gerasse um processo indispensável à compreensão dos mecanismos que produzem o fundo de que vivem e falam essas personagens estilisticamente pintadas com o traço corrido sobre a fibra de vidro que as empalidece no frio cortante do seu branco ou ainda estilisticamente atiradas para o fundo de uma consciência mal vislumbrada na sobra reticular de uma parede que não é translúcida nem opaca como não é translúcido nem opaco o poder que a constitui.

    Crap-Fábrica de Munições não é uma história dos seus números, pois muito, um quadro sobre os senhores da guerra. E uma história dos seus números, pois
    Há um polvo que enriquece
    Pelos oito cantos da terra…
    A sua riqueza cresce
    Com os mortos que desterra…
    Há um polvo que enriquece,
    Um polvo chamado guerra.

    Como contraponto, apenas, a voz da exilada, a voz da refugiada, a voz (quase solitária) da canção sem lágrimas:
    Sou a voz duma cigarra
    Numa manhã que secou…
    Trago no ventre a guitarra
    Com que a guerra me tocou…
    Só a noite nos agarra
    Ao que a morte nos tirou!

    A memória dos homens é curta… E seria bom não esquecer.

    João Maria André

    Letras de João Maria André 
Músicas de Amilcar Cardoso 
Voz de Ofélia Libório
    Ouça as canções da peça
    Canção sem Lágrimas e Canção da Guerra

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