Transforma-se o amador na cousa amada
Por virtude do muito imaginar
Luíz Vaz de Camões, in Sonetos
Quando vim para Coimbra, a Cooperativa Bonifrates não tinha nascido há muito. O facto de eu ter começado a respirar teatro num grupo amador — o Teatro Experimental de Mortágua — fez-me segui-la, ou persegui-la, atentamente. Antes de conhecer individualmente as pessoas, já sabia quem eram. Para lá dos espetáculos, habituei-me a vê-los/as em iniciativas por si dinamizadas, ou em outras nas quais teimam, desde sempre, em participar — está-lhes no sangue, quando não são eles e elas que inventam, não sabem dizer «Não» quando desafiados/as para algo onde sentem que devem estar, numa marca de intervenção cidadã que é muito sua. Nos anos entretanto vividos, vieram os conhecimentos e as amizades, a partilha das inquietações e dos cravos erguidos em vozes ao alto, os abraços solidários e emocionados por entre causas comuns.
Quando fui convidada para encenar um espetáculo na Bonifrates, fiquei felicíssima, mas também atrapalhada. Tudo seria — e, de certo modo, foi — diferente daquilo a que me tinha acostumado em mais de trinta anos de profissionalização, maioritariamente n’A Escola da Noite. Sair de zonas de conforto e enfrentar desafios instiga-me sempre, mas a responsabilidade era — e é — muita. Desde logo — questão muitíssimo importante — havia muitas pessoas interessadas em participar. Eu nunca dirigira mais do que seis atores/atrizes num mesmo espetáculo. Como fazer? Que texto escolher para acolher todos e todas? Às sete da tarde, quando morrem as mães, de AveLina Pérez, pareceu-nos o texto certo.
Traduzir é ter uma relação muito íntima com as palavras de outros/as, tentar encontrar-lhes um equivalente na nossa língua, mantendo sentidos, claro, mas também respeitando o máximo possível sons e ritmos. Pela segunda vez — depois de Pó e Batom, de Esther Carrodeguas, que encenei em 2023 no Centro Dramático de Évora —, propus-me levar mais fundo esta intimidade.
Neste texto, AveLina aborda o teatro — a arte? — e a relação entre quem faz e quem assiste de um modo crítico, mesmo paródico, aprofundando metateatralmente a estranheza que se pode instalar quando há elementos que trocam subitamente de lugar, o que pode levar-nos também a revermo-nos na estupidez que, de algum modo, é apresentada. E também na solidão. Este questionamento, pareceu-nos, caía bem num grupo com mais de quarenta anos de atividade.
Desdobrámos personagens, palavras e vozes na busca de um equilíbrio coletivo que nos parecia importante e possível de alcançar. Tive à disposição um elenco de catorze pessoas que vai dos dezoito aos setenta e oito anos, e não há como não me emocionar quando penso em semelhante privilégio. Tal como quando senti em cada um dos dias o significado do bom acolhimento e da hospitalidade.
Amadores/as são aqueles e aquelas que amam. Às vezes tão verdadeiramente que trocam horas de sono e de descanso por horas de inquietação, à volta da imaginação e da criação, sim, mas também da repetição e do cansaço. A todos e a todas que se empenharam neste projeto, agradeço profundamente, para além da paciência e do empenhamento, a «experiência [tão] gratificante».
«Que fique em ata.»
Sofia Lobo
junho de 2024