2023
As Intermitências da Morte
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As Intermitência da Morte
A partir do romance de José Saramago com adaptação dramatúrgica de João Maria André e encenação de João Paulo Janicas

Quando li, pela primeira vez, pouco depois de ter sido publicado, o romance “As Intermitências da Morte”, de José Saramago, desejei levá-lo ao palco. E logo que, na Bonifrates, decidimos participar nas comemorações dos cem anos do escritor, voltei a esse desejo esquecido. No João Maria André encontrei o parceiro para o trabalho dramatúrgico, esse que consiste em fundir as palavras escritas e as fantasias do escritor na matéria do palco, feita com os corpos dos nossos atores preenchendo o espaço vazio e o cansaço dos dias superado com o excesso das noites.

As minhas primeiras visões do espectáculo focavam-se no encontro amoroso entre a morte e um violoncelista. A possibilidade dessa impossibilidade agitava-me de poesia e de metafísica. Anos antes, lera «O Erotismo» de Georges Bataille: “Do erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte”. Nas “Intermitências” reencontrava, através da alegoria imaginada por Saramago, a sabedoria desse paradoxo existencial. A que se acrescentava ainda a impressão de que, neste livro, o autor se deleitara numa manobra de diversão à história de uns tais José e Pilar. Para mim, assim, «As Intermitências da Morte» eram a história de uma história de amor e uma alegoria filosófica.

Só mais recentemente, a profundidade do jogo de humor presente no texto, e que sempre lá estivera, como por regra está nas obras de Saramago, se evidenciou com força acrescida. Para além dos golpes que nunca poupa aos poderosos da religião e da política, Saramago diverte-se, aqui, colocando do outro lado do espelho a realidade da morte – essa que evitamos olhar, na agitação dormente dos nossos hábitos quotidianos, e a que também nos adaptamos, dotados que somos de um jeito natural para seguir em frente.

De um modo invertido, a força deste outro enfoque reli-a durante a experiência recente da pandemia, em face dos nossos mortos aguardando na fila do descanso eterno, retirados das cidades ocupadas por animais bravios, enquanto os animais humanos inventavam, barricados nas suas casas, outras formas de (sobre)viver e escapar à loucura.

A encenação foi atravessada por estas ideias fortes: a realidade, a aparência, a metamorfose – isso que a televisão se especializou em servir-nos em tela e tapume, como a luz aos prisioneiros na caverna de Platão; a persistência da vida, de que a robustez da pedra não é senão um arremedo – posto que a terra tremendo há de cindi-la, a água corrente amaciá-la e um viajante ver-se-á recostado nela para, então, finalmente, repousar.

Em «As Intermitências da Morte», Saramago apresenta-nos um impreciso país em que a morte deixa de matar. Obviamente, as estruturas da sociedade, da economia, de toda a cultura são abaladas. As instituições e os poderes, firmados numa ordem em que a morte tinha um lugar bem definido e que parecia solidamente estabelecido, têm de enfrentar a inédita situação. É com prontidão que a igreja e o governo, os setores da saúde, dos seguros e da indústria funerária, mesmo o crime organizado, se adaptam à nova normalidade. Até neste estado de coisas em que não se morre, todos estão empenhados em sobreviver da melhor maneira possível: admitindo que sejam muitas as complicações vindouras, a barriga fará o seu papel de empurrar… Salvo perante os que permanecem indefinidamente agonizantes: esse é um estado assaz cruel para ser suportado indefinidamente, tanto pelos próprios como pelas suas famílias. Aí, é preciso viajar até à fronteira de um fim de vida digno.

Mas os caprichos da morte não terminam ainda. Quando esta volta a matar, agora com aviso prévio, um humano violoncelista resiste à sentença, até ali infalível, da carta cor de violeta. Face ao desafio de “um exemplar da espécie de que era inimiga”, e apesar da perplexidade da sua gadanha, a morte decide metamorfosear-se em mulher e conhecer aquele “serrador de violoncelos”. Mas será, precisamente, a música que a fará soçobrar. Até quando?

João Paulo Janicas

Ficha Técnica

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    A partir do romance de José Saramago
    com adaptação dramatúrgica de João Maria André

    Encenação: João Paulo Janicas
    Cenografia: José Tavares
    Figurinos: Cristina Janicas
    Desenho de Luz e vídeo: Nuno Patinho
    Seleção e edição da Banda Sonora: Amílcar Cardoso, Hugo Oliveira, João Paulo Janicas e José Rocha Almeida
    Consultor de Magia: Luís Rodrigues
    Penteados: Ilídio Design/Carlos Gago
    Cartaz e Programa: Ana Biscaia
    Fotografia de cena: Tiago Mota
    Assistência de cena: Margarida Caramona
    Execução do cenário: José Baltazar
    Execução do guarda-roupa: Fernanda Tomás
    Operação de luz, som e vídeo: José Rocha Almeida e Nuno Patinho

    Elenco: Alexandra Silva, Beatriz Ferreira, Carla Mariana Pinto, Cristina Janicas, Francisco Paz, João Maria André, João Damasceno, José Castela, José Manuel Carvalho, Maria José Almeida, Maria Manuel Almeida, Mariana Abrunheiro, Paula Santos, Rui Almeida e Vítor Carvalho

    Banda sonora – excertos musicais de Johann Sebastian Bach, Robert Schumann, Frédéric Chopin e José Afonso

    Produção da Cooperativa Bonifrates

    Agradecimentos: A Escola da Noite, Conservatório de Música de Coimbra, Pilar del Río e Fundação José Saramago.

    A Cooperativa Bonifrates é financiada pela Câmara Municipal de Coimbra

    Apoios: Ilídio Design; Diário As Beiras, RUC, Jornal Universitário de Coimbra – A Cabra

    Espectáculo para maiores de 6 anos

Itinerância

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Apoios

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Ficha Técnica

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