de William Shakespeare
Adaptação e encenação: João Maria André
Nota do encenador
Este texto de Shakespeare é uma peça que antecipa, na sua construção e no seu jogo de caracteres, as comédias de Molière e que opera uma visão satírica e crítica sobre aqueles que procuram tirar partido da condição feminina para realizar outros intentos e se promoverem económica ou socialmente, ao mesmo tempo que ridiculariza os maridos que, desconfiando permanentemente das mulheres, fazem do ciúme a arma da sua conduta e caem no ridículo pelos excessos que assim são levados a cometer. Uma série de teias se urdem, pois, ao longo da acção, em que vão caindo os mais convencidos e os que mais subalternizam as mulheres em função dos seus próprios interesses. Assim, como motivos cuja atualidade é incontornável, contam-se a crise económica e financeira que desencadeia comportamentos de aproveitamento da pretensa fragilidade das mulheres e a resposta que elas conseguem encontrar para fazer face ao oportunismo, à desfaçatez e ao sentimento de posse de quem as pretende dominar. Acrescenta-se a este motivo a forma como os pais estabelecem o futuro matrimonial das jovens, sem ter em conta os seus sentimentos e afetos e as suas autênticas e internas inclinações e opções. Nestas teias e na caça que lhes anda associada se inspira a encenação, a cenografia e a direção de atores. Comédia de equívocos e de enganos, continua, pois, profundamente atual pela sua ironia e pela sua mordacidade, reforçada aqui pela contenção das interpretações em que se procura evitar o burlesco e a caricatura grossa para densificar as personagens na sua interioridade e na sua energia proteiforme
Mais uma vez Shakespeare aparece aqui como o grande mestre do teatro e até, é necessário dizê-lo, do teatro dentro do teatro. Porque se é de teatro puro aquilo de que aqui se trata, é também, e por isso mesmo, de teatro dentro do teatro, onde todos representam: representa Falstaff o argumento por ele congeminado e o argumento que outros constroem para o transformar em veado da floresta de Windsor, representam as comadres o seu argumento para tramarem Falstaff, representa Ford as ilusões do seu ciúme e o papel de Brook para as alimentar e enganar Falstaff, representam o clérigo, as criadas e a jovem o papel de fadas, elfos e gnomos e até o público representa o papel dos habitantes de Windsor. Teatro da vida, na vida do teatro: é esta a grande lição de Shakespeare. É por isso que da sua obra não podemos fazer um pretexto para um “teatro do aborrecimento mortal” (Peter Brook), mas sim um motivo para o teatro vivo dentro da própria vida. Ou seja, para, como atores e espetadores, celebrarmos a festa da vida, sabendo que rirmo-nos de nós próprios é, afinal, a melhor forma de nos divertirmos.
Motivação
A Cooperativa Bonifrates tem pautado a escolha do seu repertório por uma preocupação que permite identificá-la com um projeto em que o teatro é assumido como um exercício de cidadania. Coerente com esse princípio, privilegia peças em que problemáticas sociais, com incidência no mundo contemporâneo e na sociedade que nos rodeia, aparecem presentes de uma forma incisiva. Muitas vezes essa opção tem encontrado a sua concretização em autores contemporâneos ou em criações coletivas em torno de temas de incontornável atualidade. Outras vezes, consciente de que um clássico é alguém que nunca deixa de nos dizer coisas novas e sempre interpelantes, voltou-se para autores como Garrett, António José da Silva ou Molière.
Shakespeare, no entanto, nunca foi contemplado nestes mais de trinta anos da nossa existência. Entendemos, por isso, que era chegada a altura de nos aproximarmos desse grande dramaturgo, ousando a encenação de uma das suas obras.
Dentro da identidade da Cooperativa Bonifrates, As alegres comadres de Windsor pareceu-nos uma escolha natural. Trata-se, com efeito, de uma peça em que a problemática social, longe de estar ausente, constitui uma das suas marcas distintivas. Por outro lado, é abordada num registo de comédia, o que torna mais acessível a entrada no universo shakespeariano.