SOBRE A ENCENAÇÃO
Por vezes, o encenador sente dificuldade em justificar um trabalho que quis coerente, limpo de rodriguinhos, exploratório de uma forma de trabalho com os actores, ao fim de onze anos de existência desta Cooperativa.
Por tudo isto, a vida deste Quixote e deste Sancho não é sinalizada temporalmente. Vejam -nos como “f etos” poeticamente em gestação no mundo do imaginário … Sem tampo, sem lugar. Utópicos; acrónicos.
Não li este texto com os olhos de estudioso do século XVIII português. Muito menos me apeguei aos dados que, por formação profissional, conheço sobre o ambiente estético e social onde evoluiu a figura de António José da Silva.
Sem preconceitos, preferi partir para a abordagem deste texto nele procurando o dualismo que o “quixotismo” em si encerra.
A realidade, constantemente submetida a transformações, assume-se como um “contfnuo espectáculo” (como assinala Auerbach) sem perda da sua essência. E quando não se aceitam as transformações, é O. Quixote e a sua loucura a transmutaremse no esforço de melhor ver o real transformado … Parece, pois, que o que está em causa é a realidade; a vivida e a sonhada.
Todos os momentos propostos pelo Judeu demonstram-nos como nos encontramos perante todo um mundo que mais não é do que uma burla irresistivelmente cómica…
Na imaginação de cada um, no inquietante delírio quixotesco, na pacífica bonomia de Sancho, surpreendemos o grande circo do mundo, como que antecipando Calderón que surpreendeu o Grande Teatro do Mundo na vida vivida enquanto sonho…
Eis, pois, teatro/ mundo/ vida/ sonho … Quatro elementos indispensáveis para a equação que procurámos desenvolver, coerentemente, ao longo de todo o espectáculo.
Neste teatro, que foi de marionetas e que hoje é representado por homens, o poder desvelado r da criação, no seu estádio inicial, não apresenta a nítidez dos contornos das personagens; vê-los-e mos hesitantes e balbuciantes no teatro-mundo da imaginação de quem cria.
Porém, a plenitude da representação apenas nos confirma o constante jogo entre o utópico e o real; entre a rarefação onírica e a materialidade grosseiramente “ventral”…
Fellini e Bachtine harmonizam-se assim numa grande espiral circense em que-todos nós somos clowns a braços com as artes e manhas da realidade que se esconde nas máscaras do ser e do parecer. Tudo fugidio e etéreo como Dulcineia, tudo corpóreo e terrestre como Sancho e o seu burro que, em momentos de maior alvoroço perante a realidade, lança ventuosidades…
É inútil dizer que sobre os lendários Quixote e Pança já muito se escreveu. Muitas propostas cénicas, inclusive, já se realizaram. Esta é mais uma que, tal como as outras, relê o mito original não para responder ao seu sentido essencial, mas apenas para, através de actores, músicos, cenógrafo, guarda-roupa e luminotecnia, o fazer seu durante as cerca de duas horas que as personagens vivem e convivem com os espectadores.
Não sei onde está, nem o que é o “quixotismo”. Talvez Sancho seja apenas o seu complemento acabando por nos remeter para a tristeza dos palhaços que, sem vontade de o ser, re-representam o papel que lhes coube, como a Sancho lhe cabe cumprir uma vida na sombra de um amo visionário.
O visionário coabita, assim, com a dureza do quotidiano; a metáfora cede perante a banalidade do prosaico; o platonismo não suporta o escárnio de um erotismo marcado pelo triunfo dos sentidos.
Neste jogo de ilusionismos, a ilusão passa e assume-se como realidade que se aceita, mas que se sabe ser transitória e necessária para que funcione a harmoniosa «máquina» de encantos circenses.
A cada “número” de Quixote responde Sancho; a cada fantasia do Cavaleiro da Triste Figura, responde Sancho com o nonsense que sublinha a “figura triste” que se oculta sob a compósita máscara de um Quixote “alegrão do Universo”.
Despretensiosamente clownescos, assumidamente acrobatas do espírito e das palavras, ambos desafiam o ténue fio da existência no equilíbrio de quem caminha sobre a precaridade dos limites entre ficção e realidade.
Tudo não passa de um enorme faz-de-conta, que cada um leva como pode e com o auxílio do lúdico que cada um fascinantemente possui.
As aventuras só existem porque nós queremos que elas existam. Nós apenas lhes reforçamos o precário sentido teatral que se esconde nas páginas de um livro. Reforçamos-lhe a lúcida loucura de que todos, afinal, necessitamos no confronto implacável com a brutalidade do real.
Pretexto para falar sobre a loucura necessária na transformação do real, a proposta cénica desta versão de a Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança procurou ser despojada. acrobaticamente desajeitada, cedendo à simplicidade mas evitando o lugar comum.
No fundo, a procura da essência do poético que nunca necessita de grandes artifícios para se afirmar como tal!
JOSÉ BARATA
Veja a crítica de Manuel João Gomes no Público (11-04-1991)