1991
A Vida do Grande D. Quixote

SOBRE A ENCENAÇÃO

Por vezes, o encenador sente dificuldade em justificar um trabalho que quis coerente, limpo de rodriguinhos, exploratório de uma forma de trabalho com os actores, ao fim de onze anos de existência desta Cooperativa.

Por tudo isto, a vida deste Quixote e deste Sancho não é sinalizada temporalmente. Vejam -nos como “f etos” poeticamente em gestação no mundo do imaginário … Sem tampo, sem lugar. Utópicos; acrónicos.

Não li este texto com os olhos de estudioso do século XVIII português. Muito menos me apeguei aos dados que, por formação profissional, conheço sobre o ambiente estético e social onde evoluiu a figura de António José da Silva.

Sem preconceitos, preferi partir para a abordagem deste texto nele procurando o dualismo que o “quixotismo” em si encerra.

A realidade, constantemente submetida a transformações, assume-se como um “contfnuo espectáculo” (como assinala Auerbach) sem perda da sua essência. E quando não se aceitam as transformações, é O. Quixote e a sua loucura a transmutaremse no esforço de melhor ver o real transformado … Parece, pois, que o que está em causa é a realidade; a vivida e a sonhada.

Todos os momentos propostos pelo Judeu demonstram-nos como nos encontramos perante todo um mundo que mais não é do que uma burla irresistivelmente cómica…

Na imaginação de cada um, no inquietante delírio quixotesco, na pacífica bonomia de Sancho, surpreendemos o grande circo do mundo, como que antecipando Calderón que surpreendeu o Grande Teatro do Mundo na vida vivida enquanto sonho…

Eis, pois, teatro/ mundo/ vida/ sonho … Quatro elementos indispensáveis para a equação que procurámos desenvolver, coerentemente, ao longo de todo o espectáculo.

Neste teatro, que foi de marionetas e que hoje é representado por homens, o poder desvelado r da criação, no seu estádio inicial, não apresenta a nítidez dos contornos das personagens; vê-los-e mos hesitantes e balbuciantes no teatro-mundo da imaginação de quem cria.

Porém, a plenitude da representação apenas nos confirma o constante jogo entre o utópico e o real; entre a rarefação onírica e a materialidade grosseiramente “ventral”…

Fellini e Bachtine harmonizam-se assim numa grande espiral circense em que-todos nós somos clowns a braços com as artes e manhas da realidade que se esconde nas máscaras do ser e do parecer. Tudo fugidio e etéreo como Dulcineia, tudo corpóreo e terrestre como Sancho e o seu burro que, em momentos de maior alvoroço perante a realidade, lança ventuosidades…

É inútil dizer que sobre os lendários Quixote e Pança já muito se escreveu. Muitas propostas cénicas, inclusive, já se realizaram. Esta é mais uma que, tal como as outras, relê o mito original não para responder ao seu sentido essencial, mas apenas para, através de actores, músicos, cenógrafo, guarda-roupa e luminotecnia, o fazer seu durante as cerca de duas horas que as personagens vivem e convivem com os espectadores.

Não sei onde está, nem o que é o “quixotismo”. Talvez Sancho seja apenas o seu complemento acabando por nos remeter para a tristeza dos palhaços que, sem vontade de o ser, re-representam o papel que lhes coube, como a Sancho lhe cabe cumprir uma vida na sombra de um amo visionário.

O visionário coabita, assim, com a dureza do quotidiano; a metáfora cede perante a banalidade do prosaico; o platonismo não suporta o escárnio de um erotismo marcado pelo triunfo dos sentidos.

Neste jogo de ilusionismos, a ilusão passa e assume-se como realidade que se aceita, mas que se sabe ser transitória e necessária para que funcione a harmoniosa «máquina» de encantos circenses.

A cada “número” de Quixote responde Sancho; a cada fantasia do Cavaleiro da Triste Figura, responde Sancho com o nonsense que sublinha a “figura triste” que se oculta sob a compósita máscara de um Quixote “alegrão do Universo”.

Despretensiosamente clownescos, assumidamente acrobatas do espírito e das palavras, ambos desafiam o ténue fio da existência no equilíbrio de quem caminha sobre a precaridade dos limites entre ficção e realidade.

Tudo não passa de um enorme faz-de-conta, que cada um leva como pode e com o auxílio do lúdico que cada um fascinantemente possui.

As aventuras só existem porque nós queremos que elas existam. Nós apenas lhes reforçamos o precário sentido teatral que se esconde nas páginas de um livro. Reforçamos-lhe a lúcida loucura de que todos, afinal, necessitamos no confronto implacável com a brutalidade do real.

Pretexto para falar sobre a loucura necessária na transformação do real, a proposta cénica desta versão de a Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança procurou ser despojada. acrobaticamente desajeitada, cedendo à simplicidade mas evitando o lugar comum.

No fundo, a procura da essência do poético que nunca necessita de grandes artifícios para se afirmar como tal!

JOSÉ BARATA

Veja a crítica de Manuel João Gomes no Público (11-04-1991)

Ficha Técnica

X

    SOBRE QUEM FAZ O ESPECTÁCULO

    Autor: António José da Silva

    Adaptação para versão cénica, encenação e direcção de actores -José Oliveira Barata

    Dispositivo cénico e montagem- Gustavo Cardoso, Carlos Madeira e Jorge Janicas
    Figurinos, Guarda Roupa e Adereços- Muriel
    Sonoplastia e Luminotecnia- Jorge Janicas e José Altino
    Cartaz, Capa do Programa e Postal- Tiago Madeira
    Programa – Carlos Madeira

    Atores
    Cervantes – Roger Ramalhete
    A Fantasia/bailarina- Leonor Barata
    Dom Quixote – Maria Manuel Almeida
    Sancho Pança- Fernando Taborda
    Barbeiro- Gustavo Cardoso
    A Sobrinha de D. Quixote- Ana Leão
    A Ama do mesmo- Fátima Roxo
    Teresa Pança, mulher de Sancho Pança- Helena Faria
    Uma filha do mesmo -Ofélia Libério
    Um Tabelião vestido como Almocreve- Olímpio Ferreira
    üma Saloia em um burro- Cristina Janicas
    Sansão Carrasco – Ramiro Pastorinho
    Seu Criado- Olímpio Ferreira
    Um Diabo, que vem no carro- Paulo Janicas
    Belerma- Cristina Janicas
    Montesinhos- lida Rodrigues
    Calfope, que vem na nuvem- Fátima Roxo
    Apoia – Carole Galaise
    Musas- Leonor Barata e Ofélia Libério
    O homem do barco – Roger Ramalhete
    Um Fidalgo -Paulo Janicas
    Uma Fidalga- Carole Galaise
    Um Meirinho- Ramiro Pastorinho
    Um Escrivão- Roger Ramalhete
    Um Médico- Paulo Janicas
    Um Cirurgião- lida Rodrigues
    Um Taberneiro – Ofélia Libério
    Uma mulher- Helena Faria
    Um Escudeiro- Roge r Ramalhete
    Dulcineia- Cristina Janicas
    Merlim- lida Rodrigues
    A Condessa das Barbas- Fátima Roxo
    Dous homens para a audiência – Olímpio Ferreira e Paulo Janicas

    Músicos- piano: Ana Allen Gomes; violino: Manuel Pires da Rocha; flauta: Rodrigo Serráo

    A coreografia balética deve-se à colaboração de Gabriela Figo que muito agradecemos.

Ficha Técnica

X

Apoios

X

Parcerias

X