A Família Dupond ou os nós da Violência
Abrimos as páginas de um jornal, ouvimos a informação que de hora a hora nos invade através das ondas hertzianas, optamos por um qualquer programa de TV, e a notícia, mais ou menos condimentada, mais ou menos ilustrada com todos os pormenores que visam a exploração das sensibilidade do espectador, mas sempre consumida com a mesma sofreguidão, é invariavelmente a mesma: a violência. A violência vende. A violência atrai. A violência aumenta as audiências e a tiragem dos jornais. Porque a violência cresce. Porque a violência é um excesso. É sempre um excesso. E define-se, precisamente, pelo seu ser excessivo. Para lá dos limites. E na sua própria negação.
Mas o que mais nos interpela neste espectáculo do quotidiano não é tanto a violência do quotidiano, que sempre existiu nas suas formas mais explícitas e nos seus mais subtis processos de recalcamento; é, sobretudo, a encenação da violência do quotidiano e no quotidiano. Porque a grande característica da presença da violência nos nossos dias, mais do que o seu crescimento, é antes o aumento das sua representações, o cuidado posto nas suas encenações mediáticas e, principalmente, a receptividade a essas mesmas e, principalmente, a receptividade a essas mesmas encenações.
Porque a violência, em si, não tem idade nem tem século. Ou tem a idade de toda a forma de criação: criar é sempre exercer alguma violência sobre a violência do caos, e toda a arte é uma instauração de formas sobre a ausência de formas sobre as suas figuras anteriores; e, na sua versão mais radical, é uma abertura do futuro nos horizontes do nada, que, como nada, é a clausura violenta de todo e qualquer horizonte e, por isso, de todo e qualquer futuro. Mas não é com essa violência que a sociedade actual nos sacode e nos agita. É, antes com a violência que se escreve no reverso da criação e da arte, que está mais perto de Thanatos que de Eros. É o espectáculo dessa violência que o final do Século XX inscreve vertiginosamente no nosso quotidiano. E é também pelo espectáculo dessa violência que o homem do Século XX se sente vertiginosamente atraído.
Mas quando se passa da violência à sua encenação e à sua representação, passa-se também, simultaneamente, do plano do real ao plano do imaginário e do simbólico. E, nesta transição, começam a desvanecer-se as fronteiras entre o real e o virtual, de tal modo que a representação simbólica e imaginária do virtual pode dar-lhe a densidade material que é muitas vezes mais evidente e maciça do que a do próprio real. É por isso que todas as encenações da violência são, simultaneamente, um desafio e um risco: um desafio à capacidade de dizer a violência nos seus excessos e de a denunciar pela evidência das suas imagens, mas também um risco na medida em que os fios com que se tece essa sua evidência são os mesmo que conduzem aos labirintos da sua consumação, numa permanente transgressão dos limites do real, do virtual e do simbólico.
A Família Dupond é uma encenação da violência, e quer ser, ao mesmo tempo, uma encenação das encenações da violência. Sem grandes pretensões, aí residem as suas potencialidades e aí reside também o seu próprio risco. Assim, fazer a Família Dupond é ousar uma travessia do arame sem rede, é ensaiar um exercício de trapezista sobre o fundo do abismo. Os textos e as acções que lhes correspondem articulam-se a partir de sucessivas mediações, como se o teatro fosse um espelho convexo em que as suas imagens se deformam para evidenciar a deformação do real do que são as imagens: a mediação da TV, a mediação da BD (Miguelanxo Prado foi, ao lado da escrita de Alicia Guerra, a inspiração permanente para a construção do espectáculo), a mediação da sala fechada, a mediação da rua, a mediação do sonho, e a vertigem em que o sonho se confunde com a realidade. Por isso, se a deformação das imagens provoca riso, rir-se delas é rir-se do real que nelas mediaticamente se representa. O que pode ser salutar, mas também perigoso. Se a família Dupond for vista como um divertissement em que o espectador talvez esteja a rir-se, afinal e mais uma vez, de si próprio. Um riso amarelo? Apenas aquele riso de quem se diverte ao ser atravessado pelo fio aguçado de uma espada.
Chama-se Família Dupond. Mas poderia chamar-se Família Silva, Família Antunes ou Família Santos. Dupond é o nome de todos os nomes. O nome da família sem nome. Da família anónima. A Família Dupond não é uma família moral nem imoral. Como a sua história não é moral nem imoral. Mas o olhar da Família Dupond (o olhar dela, o nosso olhar sobre ela e o olhar do espectador para ela) também não poderá dizer-se amoral. Mas, do ponto a partir do qual olha, esse olhar pretende ser ou despertar um olhar crítico. Se deixar de ser divertido. Um olhar do teatro, no teatro e para o teatro. Que só tem sentido se for um olhar da vida, na vida e para a vida. A única razão de ser do teatro.
João Maria André